Por ocasião da
celebração dos 127 anos da publicação da Rerum Novarum, lançada em 15 de maio
de 1891, pelo papa Leão XIII, o bispo de Jales (SP) e referencial da Pastoral
Operária Nacional, dom Reginaldo Andrietta fala sobre a encíclica que deu
início à sistematização do pensamento social da Igreja. Para ele a doutrina
social da Igreja está integrada intimamente à sua missão evangelizadora, o que
determina desdobramentos importantes em suas práticas, principalmente nos
países mais pobres. Na entrevista, além de falar sobre o moderno pensamento
social da Igreja, o religioso afirma que é desafio, hoje, para a instituição
mostrar de modo mais claro que o ser humano é essencialmente relacional,
portanto, social. “Em cada uma de suas relações essenciais (com Deus, com o
outro, com o mundo, com a criação e consigo mesmo), Jesus Cristo revela ao
homem o caminho da amorização, como caminho de salvação”, disse. Acompanhe a
íntegra da entrevista.
No próximo dia 15 de
maio, completam-se 127 anos de publicação da Rerum Novarum, Encíclica que,
muitos consideram, deu início à sistematização do pensamento social católico,
conhecido mais tarde como Doutrina Social da Igreja. O que dessa Encíclica,
podemos afirmar que continua válido para os dias atuais?
A Igreja, no contexto
que o Papa Leão XIII escreveu a Encíclica Rerum Novarum, havia começado,
timidamente, um diálogo com a modernidade, reconhecendo a importância de
analisar questões econômicas, políticas, sociais e culturais, e posicionar-se
diante delas de modo mais lúcido e eficiente.
Graças a essa
abertura, ela passou a analisar questões societárias de modo sempre mais
sistemático, posicionando-se oficialmente frente a questões diversificadas que
foram emergindo conforme os diferentes contextos históricos. Ela conservou, no
entanto, seu foco em duas questões principais, assinaladas pela Rerum Novarum:
a relação entre capital e trabalho e a relação entre bem particular e bem
comum.
Essas duas questões
entrelaçadas se tornaram marcos referenciais no desenvolvimento da Doutrina
Social da Igreja, explicitamente presentes ou subjacentes nos muitos documentos
pontifícios que continuaram a tratar questões sociais, vários deles comemorando
aniversários da Rerum Novarum.
Quais outros
documentos que integram a moderna Doutrina Social da Igreja o senhor considera
importantes?
A Doutrina Social da
Igreja, entendida como conjunto de escritos, mensagens, cartas, encíclicas,
exortações, pronunciamentos e declarações que compõem o pensamento do
magistério católico a respeito da chamada “questão social”, é muito importante
no seu todo.
A Igreja, desde suas
origens, sempre esteve confrontada a essa questão. Embora sua doutrina tenha se
convencionado como social somente a partir da Encíclica Rerum Novarum, não se
pode dizer que os problemas sociais estivessem ausentes de seus posicionamentos
anteriores, muito menos da sua prática. Aliás, a Doutrina Social da Igreja tem
como fonte as Sagradas Escrituras.
Referências à
situação dos pobres, sob a ótica da libertação e da justiça social no Antigo e
Novo Testamentos, bem como nos primeiros séculos do cristianismo e em toda a
tradição católica, são abundantes. O confronto entre justiça humana e justiça
divina é um dos eixos fundamentais da tradição judaico-cristã. A fonte
inspiradora é a própria identidade de Deus, como Trindade, ou seja comunidade
perfeita. O ser humano é, por natureza, relacional, vocacionado a ser sua
imagem e semelhança.
Daí o questionamento
feito nas Sagradas Escrituras, em particular no livro do Gênesis, à
autossuficiência humana. A existência humana é, na realidade, coexistência. A
qualidade de relações entre os seres humanos e destes com a criação e com Deus,
é central na tradição judaico-cristã. A própria contemplação da Trindade, diz
Santo Agostinho, obtém-se pela caridade, ou seja, pela dimensão de comunhão e
solidariedade entre seres humanos.
A Doutrina Social da
Igreja, convencionada como tal a partir da Rerum Novarum, é fruto dessa
construção histórico-teológica que se atualiza sempre. Muitos documentos
pontifícios deram sequência ao tratamento de questões sociais, tais como:
Encíclica Quadragésimo Anno de Pio XI (1931); Mensagens de Rádio de Pio XII
(1941 e 1951); Encíclicas Mater et Magistra (1961) e Pacem in Terris (1963), de
João XXIII; Encíclica Populorum Progressio (1967) e da Carta Apostólica
Octogesima Adveniens (1971), de Paulo VI; Encíclicas Laborem Exercens (1981),
Sollicitudo Rei Socialis (1987) e Centesimus Annus (1991), de João Paulo II;
Encíclica Caritas in Veritate (2009), de Bento XVI; Exortação Apostólica
Evangelli Gaudium (2014) e Encíclica Laudato Si (2015), do Papa Francisco.
O Sínodo dos Bispos
de 1971 sobre a Justiça no mundo e os numerosíssimos pronunciamentos de
Conferências Episcopais nacionais e continentais, tratando problemas sociais
específicos de cada país e continente, se tornaram também referências
importantes do pensamento social católico.
Em síntese, a Igreja
Católica considera que sua Doutrina Social está integrada intimamente à sua
missão evangelizadora, o que determina desdobramentos importantes em suas
práticas, principalmente nos países mais pobres. Foi a partir das preocupações
sociais da Igreja que se desenvolveram, por exemplo, as várias Teologias da
Libertação contextualizadas, assim como as Comunidades Eclesiais de Base e
muitos movimentos, pastorais e entidades da Igreja, de cunho social.
A tradução de Rerum
Novarum, do latim ao português, significa “das Coisas Novas”. O que é preciso
ser renovado hoje quando falamos de pensamento social da Igreja?
O modelo
preponderante de sociedade e de desenvolvimento promovido nos tempos atuais é
economicista. A Igreja necessita tratar essa questão com mais cientificidade,
assegurando um olhar teológico atualizado. Paulo VI já alertava em sua
Encíclica Populorum Progressio: “O desenvolvimento não se reduz a um simples
crescimento econômico. Para ser autêntico, deve ser integral, quer dizer,
promover todos os seres humanos e o ser humano no seu todo”.
Essa visão tem como
base a antropologia cristã fundada na premissa de que o ser humano só se
realiza plenamente enquanto relacional, abrindo-se a todas as dimensões que lhe
constituem como pessoa e à sua transcendência. Chamada a realizar-se, a pessoa
só alcança esse objetivo, transcendendo-se na relação com Deus, com o outro e
com o mundo. À medida que o ser humano se fecha a qualquer uma das suas
relações, caminha na direção contrária do seu devir, tornando-se
autossuficiente, portanto, contraditoriamente, menos humano.
O individualismo, na
sua forma pós-moderna, nega a relacionalidade. Nos tempos atuais, o
individualismo é vivido ao extremo, sob as “regras” do mercado neoliberal e sob
a influência sempre maior da razão tecnocientífica. Nesse contexto de
hiperindividualismo narcísico, o ser humano se encontra desorientado, correndo
atrás de uma felicidade paradoxal, alcançando, no mais das vezes, a própria
decepção.
Em consonância com a
Populorum Progressio, somente na perspectiva integrada de sua personalidade, ou
seja, integrando todas as suas dimensões constitutivas, é que o ser humano pode
alcançar a sua plena realização. Apesar dessa clareza, a busca de realização
plena do ser humano permanecerá um mistério. A esse respeito, a Constituição
Pastoral Gaudium et Spes diz que o mistério do ser humano só se esclarece
verdadeiramente em Jesus Cristo, pois Cristo revela o ser humano a si mesmo e
lhe desvela sua vocação sublime de viver dignamente irmanado no amor divino.
Em suma, o pensamento social da Igreja tem como desafio, hoje, mostrar de modo mais claro que o ser humano é essencialmente relacional, portanto, social. Em cada uma de suas relações essenciais, com Deus, com o outro, com o mundo, com a criação e consigo mesmo, Jesus Cristo revela-lhe o caminho da amorização, como caminho de salvação.
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