Hoje estou no meu 360º dia de isolamento social e
no 300º dia de cuidado a pacientes acometidos pela COVID. Não quero romantizar
tudo isso que estamos vivendo. Muito menos participar dessa onda de pessimismo
dos meios de comunicação. Mas quero dizer “sim, a tempestade passará, a
humanidade sobreviverá, a maioria de nós estaremos vivos – mas habitaremos um
mundo diferente."(Yuval Harari). E é sobre essas mudanças que a COVID
provoca que quero escrever. Hoje sou um médico diferente, sou uma pessoa
diferente, e tudo isso graças a tantas histórias que vivi.
Quero contar a história de um pai que invadiu a Ala
COVID da Santa Casa de Fernandópolis após sua filha ser intubada. Ele chorava e
entre gritos pedia que a salvássemos. Depois de um tempo e muito diálogo ele se
acalmou. No fim da conversa olhou para a equipe e disse que éramos heróis,
pediu que nos cuidássemos, pois, a vida de muitas pessoas dependia de nós.
Mesmo com tanta dor lembrou-se do outro. Naquele momento lembrei que quando
tive COVID também vivi a experiência de ser cuidado, de ser amparado e amado. Naquela
noite aprendi que a vida das pessoas a nossa volta depende de nossas ações, e que
nós dependemos das ações dos outros. Co-responsabilidade, empatia,
solidariedade são palavras que aprendi naquela noite e que busco relembrar
todos os dias.
Também quero contar histórias das equipes em que
trabalho. Apesar do senhor acima ter nos chamados de heróis, quero dizer que
somos apenas seres humanos. Com eles aprendi que sempre podemos fazer mais,
apesar de tanta politização em torno de leitos e vacinas, apesar de não ser de
hoje que o SUS sofre com a falta de recursos, apesar de tantas coisas eles não
deixam a “peteca cair”. Tenho orgulho deles, tenho orgulho de chamá-los de
amigos.
Estive na UPA de Fernandópolis esses dias e apesar
do horário avançado, muitos dos que encerraram seu turno às 19h continuavam no
trabalho. Estimados amigos vocês honram suas profissões. Honram os mais de dois
mil profissionais da saúde que partiram no meio dessa batalha. Vocês me ensinam
que não somos heróis, mas apenas seres humanos que entenderam a palavra
diaconia. Vocês me ensinam que não precisamos de heróis, mas apenas de pessoas
que aprenderam a ver a beleza da arte do encontro, embora haja tantos
desencontros. Vocês me lembram as palavras de Exupéry “temos sempre algo para
dar: um pouco de alegria e muita esperança, um pouco de verdade e muito
otimismo, um pouco de ânimo e acolhimento a esse mundo desnorteado, violento,
de coração vazio, cansado de frustrações e tédio. Apesar de tudo, temos sempre
algo para dar. Em um mundo que se faz deserto, temos sede de encontrar um amigo
verdadeiro”. Obrigado por serem verdadeiros amigos, que um dia possam ouvir do
próprio Cristo: vinde benditos de meu Pai, pois estive enfermos e me visitaste
(cf. Mt 25, 36)
Por fim, gostaria de falar aos pacientes que estão
internados na Santa Casa de Fernandópolis, e dos tantos outros que estão em
inúmeros hospitais. Pessoas que neste instante lutam por suas vidas. Vocês me
ensinam que apesar do cansaço não posso desanimar, ensinam a ser grato por cada
batimento do coração, ensinam a ser grato pelo tempo já vivido.
Muitas são as perguntas sem respostas, muitas são
as angústias e lágrimas, mas por vocês posso dizer que a nossa fé e esperança
são maiores que o medo que nos cerca, e a esperança não nos decepciona (cf. Rm
5,5). Por vocês sempre estaremos lá, mesmo que seja com lágrimas nos olhos,
afinal de contas somos apenas seres humanos, não temos capa nem super poderes,
somos apenas gente cuidando de gente.